Abaixo, a terceira parte dos meus estudos sobre Canotilho. Aqui trataremos do 2º capítulo incluso na primeira parte do livro "Direito Constitucional e a Teoria da Constituição". Boa leitura! =)
Capa do livro de Canotilho de 1998. |
O 2º capítulo da primeira parte do livro "Direito Constitucional e a Teoria da Constituição", de J. J. Gomes Canotilho, é, no meu entender, o coração dessa primeira parte. Aqui Canotilho aborda a temática (ou problemática) do poder constituinte, onde afirma inicialmente - e, com razão - que tal tema envolve questões complexas e controvertidas da teoria política, da filosofia, da ciência política, da teoria da constituição e do direito constitucional.
No começo do capítulo, o autor formula um "catálogo de perguntas", que servirá como um roteiro da abordagem do poder constituinte, bem como um modo de problematizar esse tema. As perguntas são:
- O que é o poder constituinte?
- Quem é o titular desse poder?
- Qual o procedimento e forma do seu exercício?
- Existem ou não limites jurídicos e políticos quanto ao exercício desse poder?
Ainda sim, e em termos iniciais, Canotilho trata do poder constituinte como um poder relevante tanto em termos jurídicos (constituição de uma ordem jurídica), como políticos (autodeterminação e auto-organização de uma sociedade). Ou seja, "a constituição passa a ser um texto jurídico que fixa a constituição política de um estado" (p. 68). Em se tratando do contexto europeu, em que existe uma organização supranacional (União Europeia), o autor revela que o poder constituinte se apresenta como um "conceito limite" do direito constitucional nacional e questiona: "é ou não política e juridicamente concebível um poder constituinte interdependente ou pós-soberano assente no exercício em comum do poder constituinte originário dos povos?" (p. 68).
Pois bem. Ao tratar do processo "genético" do poder constituinte, Gomes Canotilho afirma que três palavras resumirão as características de três experiências histórico-constituintes, quais sejam: revelar, dizer e criar a constituição. Trataremos, a seguir, dessas características.
1) Revelar a norma: Trata-se, aqui, da experiência constitucional dos ingleses. Inicialmente, importante ressaltar, que o modelo de constitucionalismo inglês possui uma tradição muito forte e a sua constituição visa proteger essa tradição. Para entendermos um pouco melhor sobre esse conceito de tradição, vale a pena ler "Entre o passado e o futuro", de Hannah Arendt (No grupo de estudos da OAB/MA, a nossa primeira leitura foi o primeiro capítulo desse livro da Hannah. Pretendo disponibilizar futuramente o meu fichamento aqui no blog). Para nós, é muito difícil entendermos esse modelo inglês de constitucionalismo, uma vez que vivemos um sistema constitucional muito diferente. No entanto, o que nos cabe aqui explanar é que não existia nesse modelo um poder constituinte planificado no modelo político de um povo ou uma nação. Existia apenas uma tradição que não pretendia acabar com as estruturas políticas tradicionais. Ou seja, não havia interesse em criar uma lei fundamental que garantisse os direitos e liberdades, mas, tão-somente, estabelecer "um equilíbrio entre os 'poderes medievais' de forma a garantir 'restaurativamente' os direitos e liberdades (os 'direitos radicados no tempo') e a assegurar um governo moderado, no qual gravitassem os pesos e contrapesos das diversas forças políticas e sociais" (p. 69). Não é à toa o "equilíbrio" existente entre o Rei e o Parlamento.
2) Dizer a norma: No exemplo americano, já ganha corpo político a ideia de um poder constituinte ("We the people"), onde o "povo" passaria a ser considerado uma autoridade ou poder político superior e, não, como um poder supremo ou absoluto, como o modelo da França. Como dissemos na postagem anterior, tal constitucionalismo visava subordinar o legislador (e suas leis) às normas constitucionais, daí porque considerar que o poder constituinte transporta uma filosofia garantística (garantia de direitos e limitação de poderes). Note-se que na Revolução Americana o poder constituinte passa a ter características funcionais, onde o povo americano diz a constituição querida. Ocorre que, a partir de 1803, no caso Madison x Marbury, o poder judiciário passou a dizer o que seria a constituição, sendo atualmente considerado o verdadeiro defensor da constituição e o guardião dos direitos e liberdades dos cidadãos.
3) Criar a norma: A partir da Revolução Francesa, o poder constituinte passar a ter como titular a nação, que cria uma nova ordem política e social, dirigida ao futuro, mas visando também a ruptura com o antigo regime. Como afirma o abade E. Sieyés, o poder constituinte é um poder originário, autônomo e onipotente, para o qual se transferem atributos divinos. Boa parte dos poderes constituinte e dos constitucionalismos ocidentais se basearam no modelo francês. Isso porque boa parte das constituições ocidentais nasceram de momentos de rupturas com antigos regimes, principalmente os ditatoriais.
Após a apresentação dos modelos, cabe apresentarmos a análise de Canotilho sobre o titular/sujeito do poder constituinte. Veja que, pelos modelos acima elencados, existem na história do constitucionalismo moderno ocidental, três titulares: a tradição, o povo e a nação. Como dito anteriormente, para entendermos melhor sobre a tradição, vale a pena ler o livro da Hannah. Sobre as outras duas modalidades, mais a frente iremos abordá-las de forma mais minuciosa (assim espero!). Para facilitar a nossa vida - e, assim como Canotilho abordou - iremos tratar o titular do poder constituinte como sendo o povo.
No entanto, quem é o povo? Tal pergunta sempre me lembra o livro de Friedrich Müller, "Quem é o povo? A Questão Fundamental da Democracia", que li a uns cinco/seis anos atrás... Podemos até encontrar esse livro aqui. No entanto, como estamos a falar cá do entendimento de Canotilho, vamos para ele. Para o autor português, o povo se apresenta como uma grandeza pluralística, ou seja, como uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas.
Seguindo ainda a ordem de questionamentos feitas acima, nos deparamos com a problemática da legitimidade (procedimento e forma) do processo constituinte. Trata-se aqui de uma parte extremamente conceitual, pela qual passaremos apenas rapidamente. Canotilho entende que existem decisões pré-constituintes e decisões constituintes. As decisões pré-constituintes seriam aquelas decisões que antecedem o processo constituinte (óbvio!), como: 1) as decisões de iniciativa de elaboração e aprovação de uma nova constituição; 2) decisões atributivas do poder constituinte e definição do procedimento jurídico de elaboração da nova constituição; e 3) as leis constitucionais transitórias, enquanto não for aprovada a nova constituição. Creio que todos os processos constituintes têm esses tipos de decisões que servem, fundamentalmente, para legitimar o procedimento constituinte e, claro, o seu resultado, a nova constituição daquele estado.
Já as decisões constituintes são o próprio ato procedimental constituinte. Estas decisões podem ocorrer através de uma assembleia constituinte ou através de um processo referendário. As assembleias constituintes podem ser: a) soberana, onde cabe à assembleia constituinte elaborar e aprovar a constituição, excluindo-se qualquer intervenção direta do povo através de referendo ou plebiscito; b) não soberana, onde a assembleia constituinte é responsável apenas pela elaboração e discussão do projeto de constituição, porém, o povo, através de referente, irá aprovar (ou não) o projeto elaborado; e c) convenções do povo, que se assemelha muito com a assembleia constituinte não soberana, no entanto, ao invés de referendo, a ratificação popular é feita através de convenções do povo reunidas em diversos centros territoriais. Já o referendo constituinte é um procedimento onde o povo aprova diretamente o projeto de constituição sem qualquer mediação de representantes.
E, na ordem, Canotilho trata da limitação do poder constituinte. Interessante notar que na teoria clássica do poder constituinte, este era considerado um poder autônomo, incondicionado, livre... Tal teoria é a própria do modelo de poder constituinte francês relatado acima. No entanto, a doutrina atual rejeita esta concepção e entende que o poder constituinte (tradição, povo e nação) "é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como 'vontade do povo'" (p. 81). Não obstante, observa-se ainda a "submissão" do poder constituinte a certos princípios de justiça, bem como aos princípios de direito internacional. Isso tudo significa que o poder constituinte não surge num vácuo histórico-cultural, como muito bem discorre o autor.
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