11/10/2015

"Vidas Secas", de Graciliano Ramos


Sinopse do livro aqui.

1. "Vidas Secas" é uma das obras mais conhecidas e a mais traduzida para outros idiomas de Graciliano Ramos. Publicada em 1938, ela faz parte da geração do modernismo no Brasil.

2. Em linhas gerais, a obra trata de uma família nordestina que está perambulando pelo sertão, buscando a sua sobrevivência. Essa família é composta por Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e a cadela Baleia. Eles chegam a uma casa "abandonada" e lá resolvem ficar, porém, logo depois, descobrem que essa casa pertence a uma terceira pessoa e, para que eles fiquem lá, terão que trabalhar para essa pessoa, que Fabiano chama apenas de "patrão".

3. Pois bem, a narrativa do livro se passa, quase toda, enquanto eles residem nessa fazenda e vamos acompanhar, no decorrer do enredo, o olhar interiorizado do escritor sobre as personagens, seus sonhos, seus conflitos e seus medos. Frise-se que o fato de cada personagem expressar o seu ponto de vista é uma característica importante nessa obra. A cada capítulo muda a perspectiva, de tal forma que as opiniões nunca são impostas pelo narrador, elas decorrem de cada personagem. O outro sempre está em perspectiva, nunca o eu.

4. O livro é composto por treze capítulos, sendo cada capítulo autônomo em relação ao outro, motivo pelo qual tal romance é classificado como "desmontável". Porém, apesar dessa autonomia, existe uma ordem cronológica nos acontecimentos, motivo pelo qual recomendo que o mesmo seja lido do início ao fim. Mas, claro, isso é uma opção do leitor.

5. Essa história poderia ser de Fabiano como de qualquer outro nordestino. E poderia ser no período do Estado Novo como de qualquer outra época. Apesar de atualmente a situação do Nordeste ter melhorado um pouco devido aos programas sociais de abastecimento de água, energia e de distribuição de renda, sabemos como ainda é difícil a situação das pessoas que ainda lidam com a seca e a pobreza iminente. Frise-se que até o final da década de noventa do século passado e início desse século, era constante a migração de nordestinos para as grandes cidades e grandes estados. Então, Graciliano Ramos, com grande sabedoria, não escreve apenas uma ficção, mas uma realidade, infelizmente abandonada até hoje pela classe política.

6. Um dos aspectos mais interessantes nessa obra literária e que sempre é comentada por quem quer que fale sobre ela é a privação da palavra. As personagens são analfabetas, não tiveram acesso à educação e, portanto, nunca tiveram oportunidade de aprender a palavra. Essa "ignorância" é passada dos pais para os filhos. Uma passagem interessante do livro é quando o menino mais velho quer saber o que significa "inferno". Ele achava a palavra tão bonita e não conseguia entender porque a mãe falava que era um lugar ruim: "Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-lo dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo." (p. 59). A falta de conhecimento sobre a palavra também priva as personagens de manterem contato com outras pessoas e de expressarem os seus sentimentos. Eles têm conhecimento apenas do básico para a comunicação, o que limita o mundo em que vivem. "Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimento" (p. 82). O mundo em que viviam era tão pequeno e pobre, que só conheciam o seu Tomás que sabia ler, ou melhor, que gastava a vista lendo demais, mas não sabia mandar era muito cortês, o que era estranho para alguém que tinha tanto conhecimento. Mas, apesar de tanta cortesia, sabia que todos obedeciam ao senhor Tomás. Fabiano ás vezes o imitava falando palavras difíceis, no entanto, achava uma grande tolice, pois entendia que um homem como ele não tinha nascido para falar certo.


7. Fabiano e família vivem praticamente isolados na fazenda. Apenas em dois capítulos há a narração da ida deles para a cidade. No primeiro, Fabiano vai sozinho à cidade comprar alguns mantimentos para sinha Vitória. Lá acaba se esbarrando com um soldado amarelo e, no final das contas, acaba sendo preso por esse soldado. Em um segundo momento, a família vai para a festa de Natal da cidade. NessAs duas situações, percebemos claramente o quanto a privação da palavra é um obstáculo para a comunicação desses sujeitos com a sociedade. Quando Fabiano é preso ele simplesmente não sabe expressar o motivo pelo qual ele está preso e, entende, por fim, que ele está preso justamente por não saber se expressar. Na ida da família para a cidade, no Natal, ocorre a mesma coisa: a dificuldade na comunicação acaba por isolá-los da companhia das outras pessoas, uma vez que, se a linguagem é o mundo, eles não entendem o mundo.

8. Uma das personagens mais interessantes do livro é a cadelinha Baleia. Baleia é membro da família e personagem ativa no livro. Ela pensa, opina, sonha, delira e cria juízo de valor. Aliás, até nome ela tem, coisa que as crianças foram privadas... Isso é considerado na literatura como antropomorfização, que é a qualidade de dar características humanas à animais e coisas. A mim, Baleia me conquistou. Aliás, o capítulo de sua morte, que é de conhecimento público, é um dos mais tristes que li. A morte de Baleia não entristece apenas os leitores, mas também Fabiano, que traz o peso de ter matado a cadelinha pelo resto da história. Por outro lado, e ao revés do que ocorre com Baleia, o ser humano em "Vidas Secas" é descrito como um animal (zoomorfização): "Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, gradava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia" (p. 20).

9. O papel da mulher nessa obra também merece certo destaque. Apesar da pouca instrução, a opinião de sinha Vitória é sempre muito relevante para Fabiano. Ele a consulta sobre a educação dos menino, para que ela faça as contas do valor que ele deve receber do patrão, enfim, a relação entre os dois me parece ter um certo nível de igualdade, não identifiquei uma relação patriarcal, no sentido de só ele mandar.

10. "Vidas Secas" tem como pano de fundo a opressão que vivem os mais humildes e desprovidos de conhecimento da palavra. Após a sua prisão, Fabiano vive com a ideia na cabeça de se vingar do soldado amarelo. Seja quando está na cidade ou no seu reencontro com o soldado, tal pensamento sempre vem a sua mente. No entanto, ele prefere acomodar-se, pois, como ele mesmo pensa, governo é governo, ou seja, o soldado amarelo representa o Estado e este é o todo poderoso contra o qual Fabiano nada pode. Não obstante, Graciliano Ramos, comunista como era e inspirado pelas ideias de Marx, não poderia deixar de incluir nessa obra a relação de opressão do trabalhador. Essa relação opressora fica evidente quando Fabiano é obrigado a trabalhar para o patrão para poder ficar nas terras e na hora do pagamento, onde o patrão inventa juros exorbitantes, fazendo de Fabiano um quase devedor de seu empregador.

11. O início e o final do livro se apresentam com essa família se mudando, fugindo da seca. No entanto, a diferença é que após a seca chegar na fazenda onde estavam, eles estão com um fio de esperança e fazem planos para o futuro: querem ir atrás um lugar para morar na cidade, colocar as crianças na escola, onde terão uma profissão, e a vida será bem melhor. Percebemos o quão pequeno é o sonho dessas pessoas e até palpável para nós. Ora, o sonho da sinha Vitória é ter uma cama onde dormir! Isso ocorre porque essas pessoas não tem nada, nem o que vestir, vivem num estado de completa miséria. E o Governo, que poderia fazer tão pouco para que essas pessoas fossem minimamente felizes, não faz nada... Na minha opinião, o fato do início e fim do livro terminar com essa família fugindo da seca é muito simbólico e característico do realismo crítico de Graciliano Ramos, que é extremamente ácido. Porém, esse fio de esperança que aparece no final nos mostra que, apesar de tanta desgraça, nem tudo está perdido, a realidade pode mudar.

12. O título "Vidas Secas" não quer dizer que essas pessoas vivem apenas na seca, mas que suas vidas são secas também de direitos. A começar por elas sequer saberem que têm direitos. As personagens se colocam num estado de servidão e entendem que a vida é assim mesmo, que nasceram para apanhar, que não nasceram para aprender das letras e do mundo e que só lhes contenta ter um lugar para morar e comida para comer. Ou seja, muito pouco, sonham muito pequeno. E a gente se pergunta: mas que justiça é essa?

13. De tantos livros que eu li, não tem como não comprar este com "Vinhas da Ira", de Steinbeck. Aliás, este último foi publicado em 1939, ou seja, um ano depois da publicação da obra de Graciliano. As duas obras retratam injustiças sociais, onde as pessoas são retiradas de suas terras, migram para outra localidade, são analfabetas (mais uma vez, o problema da linguagem...), passam fome, lidam diretamente com a morte e ainda sofrem a opressão do Governo, que deveria ampará-las. Outro ponto em comum: os dois escritores foram perseguidos pelo Governo. A diferença é que a primeira se passa no Brasil e a segunda nos Estados Unidos. Mas, as realidades são as mesmas e o final dos dois livros retratam a mesma coisa: esperança.

14. Enfim, Graciliano Ramos foi e é um militante das causas sociais. Esse livro é leitura obrigatória. 


Um beijo e até mais! =*
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