Como prometido, eis outra parte do livro de Canotilho "Direito Constitucional e a Teoria da Constituição". Essa semana que se passou não tive tempo de postar essa segunda parte aqui no blog, pois estava me dedicando à leitura e compreensão de Canotilho e, ainda sim, queria que ocorresse primeiro a reunião do grupo de estudos a fim de melhorar o meu entendimento. Isso porque o texto de Canotilho é um texto muito interessante e gostoso de se ler, no entanto, apresenta muitos conceitos que são, às vezes, de difícil assimilação. Algumas coisas entendi do seu livro, outras nem tanto (daí porque gostaria que ocorresse primeiro a reunião). Nesta 2ª parte, consta apenas o 1º capítulo da primeira parte do livro para que essa postagem não fique grande e a leitura pesada. Vou apresentar aqui uma espécie de resumo desse capítulo, principalmente o que eu acho que é a discussão central dessa parte. Boa leitura! =)
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Capa da 2ª edição do livro, de 1998. |
Na primeira parte de seu livro "Direito Constitucional e a Teoria da Constituição", Canotilho dedica o primeiro capítulo ao estudo do constitucionalismo.
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Esquema que fiz desse capítulo |
Em linhas gerais, e como em todo o livro, Canotilho apresenta muitos conceitos e muitos esquemas importantes para entendermos o fenômeno do constitucionalismo moderno e que, claro, iremos abordar por cá também.
Para Canotilho, constitucionalismo "é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo ilimitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade" (p. 51). Dessa forma, Canotilho apresenta o constitucionalismo como uma teoria normativa da política, uma vez que possui como característica principal a limitação do poder com fins garantísticos. Interessante o fato de Canotilho conceituar o constitucionalismo como uma ideologia, o que interpreto como um conjunto de ideias, convicções e princípios perseguidos por determinado grupo, movimento, época ou sociedade.
Nesse diapasão, o autor nos apresenta uma distinção fundamental para entendermos esse capítulo, qual seja, a distinção entre o constitucionalismo antigo e o constitucionalismo moderno.
O constitucionalismo antigo corresponde ao período que vai do fim da Idade Média até o século XVIII. Este constitucionalismo estaria marcado por "um conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores de seu poder". Como vemos, aqui aparecem duas características muito fortes que caracterizaram esse período: a presença de um monarca e a divisão da sociedade em estamentos.
Por outro lado, o constitucionalismo moderno, que surge a partir do século XVIII, opõem-se justamente a esse modelo antigo de constitucionalismo, legitimando o aparecimento de uma constituição moderna. Canotilho esquematiza, então, as dimensões fundamentais dessa constituição, que, são, na verdade, dimensões ideais e que, portanto, não correspondem à realidade dos modelos de constitucionalismo do ocidente, como veremos adiante. Essas dimensões que caracterizam um ideário da constituição moderna são: 1) a ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; 2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; e 3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.
Desse modo, para o autor, existem dois temas que são centrais no constitucionalismo moderno, quais sejam: fundação, legitimação e limitação do poder político; e constitucionalização dos direitos e liberdades do indivíduo. Nesta vereda, Canotilho aborda esses dois temas através de três modelos teóricos de constitucionalismo que, para ele, são "capazes de explicar o desenvolvimento da ideia constitucional" (p. 55), que são: o modelo historicista, o modelo individualista e o modelo estadualista.
Agora, chegaremos no ponto mais importante desse capítulo, em meu entendimento, que a discussão sobre cada modelo de constitucionalismo ocidental. Importante ressaltar que cada modelo possui suas próprias características que foram influenciadas pela cultura de determinado lugar/povo e pelo momento histórico em que cada processo constitucional ocorreu (e, claro, como esse processo ocorreu).
a) Modelo Historicista:
Tal modelo está baseado no constitucionalismo inglês e possui como características: 1) a garantia dos direitos adquiridos (liberty and property); 2) a estruturação corporativa dos direitos em estamentos; e 3) a regulação desses direitos e dessa estruturação através de contratos de domínio.
Quais as cristalizações jurídico-constitucionais deste modelo que passaram a fazer parte do patrimônio da constituição ocidental? 1) A liberdade passou a ser considerada a liberdade pessoal de todos os ingleses e como segurança da pessoa e dos bens de que se é proprietário; 2) a criação de um processo justo regulado por lei (due process of law); 3) as leis da Inglaterra são reveladas e interpretadas pelos juízes que vão, assim, sedimentando o direito comum dos ingleses (common law); e 4) a partir da Glorious Revolution (1688-1689) ganha estatuto constitucional a ideia de representação e soberania parlamentar (rei e Parlamento) indispensável à estruturação de um governo moderado.
b) Modelo Individualista:
Esse modelo foi inspirado no constitucionalismo francês.A Revolução Francesa procurou edificar uma nova ordem sobre os direitos naturais dos indivíduos (primeiro momento individualista) e não com base numa ordem jurídica estamental. Para isso, buscou-se uma ruptura com o antigo regime (ancien régime) e a criação de um novo, com uma nova ordem social.
Dessa forma, o que verificamos com o constitucionalismo francês (individualista) foi a fundação/legitimação do novo poder político, através de um contrato social assente nas vontades individuais.
Surge com esse modelo também, com um pouco mais de força, a categoria do poder constituinte (que veremos com mais detalhes no Cap. 2, portanto, na próxima postagem), que no constitucionalismo francês aparece como um poder originário pertencente à Nação, sendo que este seria o único que, de forma autônoma e independente, poderia criar uma lei superior (constituição).
c) Modelo Estadualista:
Por fim, este modelo possui como fonte de inspiração o constitucionalismo americano. Aqui, novamente, está presente a categoria do poder constituinte, no entanto - e diferente do que ocorreu no modelo anterior - tal poder pertenceria ao povo e não mais à nação. Essa diferença é muito importante e será melhor tratada no próximo capítulo.
Existem algumas características próprias desse modelo de constitucionalismo. Aliás, como disse anteriormente, cada modelo é marcado por suas próprias características, como resultado de sua própria história, cultura, etc. O certo é que o povo americano, devido ao seu descontentamento com o parlamento britânico - "o parlamento soberano que impõe impostos sem representação (taxation without representation)" (p. 58) -, criou uma constituição que visava proteger os cidadãos americanos das leis do legislador parlamentar soberano.
O poder constituinte americano (We the people) passa a tomar decisões, dando contornos à ideia de uma democracia. Alguns estudiosos entendem essa democracia americana como sendo uma democracia dualista: onde existem decisões raras tomadas pelo povo (típicas de "momentos constitucionais", no exercício do poder constituinte) e decisões frequentes tomadas pelo governo.
Vê-se, ainda, que aqui o poder constituinte não era um poder que visava criar (ou reinventar) um soberano onipotente (Nação), como no modelo francês, mas tão-somente "permitir ao corpo constituinte do povo fixar num texto escrito as regras disciplinadoras e domesticadoras do poder, oponíveis, se necessário, aos governantes que atuassem em violação da constituição, concebida como lei superior" (p. 59). Nesse sentido, pretendia-se criar um governo limitado, um governo vinculado à lei fundamental (constituição).
Dessa forma, justifica-se a elevação do poder judiciário a verdadeiro defensor da constituição e guardião dos direitos e liberdades, principalmente após o caso Marbury x Madison, em 1803.